Por que Brasília tem a menor diferença entre preços de gasolina de todas as capitais?
Levantamento do Fato Online retoma a suspeita em torno da formação de cartel, ainda que tácito, no mercado de combustíveis da Capital Federal. Cade e Ministério Público investigam sindicato e postos do DF
Foto: Sheyla Leal/ObritoNews/Fato Online
Diferença de preço da gasolina no DF é de apenas R$ 0,04: a menor do país
A percepção dos motoristas brasilienses coincide com o que indicam os dados oficiais: o Distrito Federal tem a menor diferença entre preços de gasolina do país, segundo constatou o Fato Online, considerando o mais recente levantamento da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustível).
A variação entre o valor mais caro e o mais barato cobrados pelos postos da Capital Federal é de apenas R$ 0,04 (veja arte abaixo), a menor entre as capitais. Em segundo lugar nesse ranking, aparece Boa Vista (RR), com uma diferença de R$ 0,10. Já a maior discrepância entre o preço mais alto e o mais baixo está na capital paulista, onde o motorista pode economizar até R$ 1,10 por litro.
Na última pesquisa, a ANP encontrou não mais do que cinco valores diferentes para a gasolina em todo o DF. Somente em Boa Vista – com quatro tabelas distintas –, em Vitória (ES) e em Palmas (TO) – com três – os motoristas têm menos opções na hora de abastecer, embora a variação dos preços seja maior nessas três cidades.
Cartel ou oligopólio?
Nesta reportagem especial, o Fato Online destrincha o mercado de combustíveis do DF, acostumado a investigações e a acusações de formação de cartel e de lucros abusivos. Afinal, o que faz Brasília ter um cenário sui generis nesse segmento que há décadas prejudica os brasilienses, tão dependentes do carro para se locomover?
Existem, atualmente, 317 postos de combustíveis espalhados pelo DF. Cerca de 40% do mercado estão concentrados em cinco grandes redes. Só a maior delas, a Cascol – antiga Gasol –, detém quase 30% dos estabelecimentos, sendo que, no Plano Piloto, a maior parte dos 73 pontos de abastecimento pertence à empresa.
Os mandachuvas do mercado de combustíveis brasilienses compraram terrenos no início de Brasília a preço de banana. Sem concorrência, cresceram rápido, articularam-se politicamente e construíram impérios, que hoje incluem a administração de motéis e de supermercados, por exemplo.
A Cascol nasceu da sociedade de três empresários do segmento. Um deles, Antônio Matias, reconhece que o mercado é muito concentrado, mas diz que o faturamento do grupo não aumenta há mais de 10 anos. “Não estamos crescendo faz tempo. E cartel não existe: isso foi uma ideia que pegou na cidade e parece que não tem jeito de mudar”, comenta.
Formação de preços
O lucro bruto médio dos revendedores de combustíveis no DF gira em torno de 14,25%, segundo o próprio Sindicombustíveis-DF (Sindicato do Comércio Varejista de Combustíveis e de Lubrificantes do DF), antigo Sinpetro-DF.
Embora a estrutura dos postos seja bastante parecida, a planilha de custos varia com base na localização e no preço do aluguel ou do terreno, no número de funcionários e de bombas e na quantidade de combustível comprada e vendida em cada mês, entre outros fatores.
Até 2002, os valores de combustíveis no Brasil eram fixados por atos dos ministérios da Fazenda e de Minas e Energia. A partir daquele ano, passou a vigorar o regime de liberdade de preços em toda a cadeia de produção, distribuição e revenda de combustíveis e derivados de petróleo. Ou seja, não há qualquer tipo de tabelamento, valores máximos e mínimos nem exigência de autorização oficial prévia para reajustes de preços em qualquer etapa da comercialização.
Com liberdade para mexer nas tabelas, os donos de postos em Brasília sempre culparam os aumentos nas distribuidoras e a carga tributária local pelo fato de a Capital ter um dos combustíveis mais caros do país. A soma dos impostos, de acordo com o Sindicombustíveis-DF, representa cerca de 37% do preço final do etanol e da gasolina.
Arte: Nilton Magalhães/Fato Online
Investigações
O mercado de combustíveis do DF é alvo de investigações há pelo menos 15 anos. Em 2003, uma CPI na Câmara Legislativa reforçou as denúncias da prática criminosa de cartel. Documentos indicaram que havia combinação de preços, com direito a ameaças a quem descumprisse o acordo capitaneado pelo sindicato.
Acuado por empresários, o relator da CPI, o ainda deputado distrital Chico Vigilante (PT), precisou de escolta policial por oito meses. “Desde então, o preço continua cartelizado. Lamento que o MPDFT [Ministério Público do DF e Territórios] não tenha tido a capacidade de acabar com isso. A ANP não faz nada. O Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] não faz nada. E a população continua indefesa”, comenta o parlamentar.
Em 2004, o Cade condenou o então Sinpetro-DF e algumas redes por orquestrarem a inusitada lei distrital que impede postos em supermercados. Em maio, o Fato Online mostrou como os empresários do segmento se uniram para impedir a entrada de novos agentes. A norma foi considerada constitucional pelo ministro Celso de Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), em um processo que transitou em julgado há sete meses. O deputado Chico Vigilante apresentou, no início deste ano, um projeto de lei com nova tentativa de derrubada da proibição vigente.
O MPDFT acumula uma série de ações envolvendo o mercado de combustíveis do DF. Entre elas, a que limitou, em 2011, a margem de lucro da então rede Gasol. Atualmente, estão em andamento três inquéritos civis públicos e um procedimento administrativo relativos ao assunto. Os casos se concentram na Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor.
Como os processos ainda se encontram em fases de instrução, nenhum representante do MPDFT quis dar entrevista. Na condição de não ser identificado, um representante do órgão lamentou a recente decisão monocrática do ministro Celso de Melo, que manteve a proibição de postos em supermercados apesar das evidências de que a lei fora orquestrada. “A queda dessa lei seria fundamental para entendermos melhor o mercado.”
Provas
Nos últimos anos, investigações em diversos âmbitos não têm conseguido provar o cartel clássico no mercado de combustíveis do DF. Ou seja, não há provas – ao menos atualizadas – de que os empresários combinam os preços em reuniões fechadas ou de qualquer outra maneira. Os preços iguais, ou muito parecidos, não configuram, por si só, a prática criminosa.
“O paralelismo de preços não significa, necessariamente, que haja o cartel tradicional, ainda mais quando se trata de produto homogêneo. De toda forma, há muitas evidências de que o mercado em Brasília é de alguma maneira coordenado”, analisa o economista da FGV (Fundação Getulio Vargas) Maurício Canedo, especialista em defesa da concorrência e regulação.
Entre investigadores e especialistas, há um consenso de que, no DF, o que ocorre é a formação de um cartel tácito, assim chamado na literatura especializada. Esse tipo de cartel está associado a mercados muito concentrados: quando existem poucos agentes e estes têm poder de impor valores aos concorrentes — aumentam ou diminuem os valores e observam se os demais adotam a mesma estratégia—, o paralelismo de preços está formado. No entender de quem acompanha o cenário brasiliense, seria justamente isso que ocorre com a atual rede Cascol.
Venda de ativos
Para quebrar essa lógica e favorecer uma concorrência mais saudável aos consumidores, a principal saída seria obrigar a maior rede a se desfazer de parte do seu patrimônio, por meio de uma ordem que deveria partir do Cade.
“Não há outro jeito: para quebrar essa ação coordenada, é necessário desconcentrar o mercado e facilitar a entrada de novos agentes. Onde existe a combinação dessas duas coisas, dificilmente há cartel, ainda que tácito”, pontua Canedo. “Se a gente pode vir a se desfazer de patrimônio? Tudo é possível”, afirma Antônio Matias, um dos diretores da Cascol.
No MPDFT, a avaliação é de que intervenções via Cade seriam, de fato, a alternativa mais viável para tentar mexer no mercado de combustíveis da Capital Federal. A derrota no processo impetrado pelo MP envolvendo postos em supermercados deu força a essa tese.
Por ora, existem duas investigações em andamento no Cade: um processo administrativo de 2003 no qual se apura favorecimento por parte da BR Distribuidora à rede Cascol e um inquérito administrativo de 2009 em que se investiga a formação de cartel. Em nota, o órgão fiscalizador explica que a determinação para a venda de ativos pode ocorrer quando se constata infração da ordem econômica provocada, entre outros motivos, por um poder de mercado excessivo.
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"Inaceitável"
Ainda que os empresários tenham liberdade para estabelecer preços, a ANP é o órgão do governo federal que tem o dever de proteger os interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta de combustíveis. Em abril de 2011, um estudo feito pelo órgão a pedido do então ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, dizia ser “altamente suspeita a uniformidade de preços verificada nos postos do DF”. “Os indícios que nos chegam de Brasília são inaceitáveis”, afirmava a nota, assinada pelo então presidente da agência, Haroldo Lima.
Ao Fato Online, a ANP informou que mantém acompanhamento rotineiro dos mercados de revenda de combustíveis e que cabe ao Cade e à SDE (Secretaria de Direito Econômico) a atribuição legal de investigar e punir possíveis infrações.
A SDE a que se refere a assessoria da ANP não existe mais desde 2012. No ano da extinção, técnicos do órgão, então vinculado ao Ministério da Justiça, elaboraram um documento que reforçava a existência de oligopólio no mercado DF, o que, segundo o texto, facilitava a adoção de práticas anticoncorrenciais. O Sindicombustíveis-DF chegou a ser acusado de influenciar na “conduta comercial uniforme” e dificultar o funcionamento de postos que cobram mais barato. O documento, no entanto, não resultou em qualquer resultado prático.
Defesa
O presidente do Sindicombustíveis-DF, José Carlos Ulhôa, no cargo desde 2004, deixou de dar qualquer declaração sobre preços depois que as investigações começaram a avançar, no fim da última década. Em uma das raras coletivas que concedeu, quatro anos atrás, ele alegou que os valores parecidos são resultados de variáveis como “mesmo produto, mesma origem e mesma carga tributária”. Ainda de acordo com ele, a proximidade entre os postos em Brasília também influencia no paralelismo de preços.
Na última semana, sustentando estarem apenas repassando os aumentos impostos pela Petrobras, os donos de postos do DF aplicaram dois reajustes no valor do litro da gasolina e ainda aumentaram o preço do etanol em até R$ 0,23. Desde 2009, do ponto de vista financeiro, não é vantajoso abastecer com álcool em Brasília.
Arte: Nilton Magalhães/Fato Online
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